Após alegações recentes nos Estados Unidos, Venezuela e Austrália, órgão incentiva que atletas contem seus casos para ajudar no combate ao problema
Após alegações de abuso no futebol feminino surgidas nas últimas semanas nos Estados Unidos, Venezuela e Austrália, o órgão regulador mundial do esporte, a Fifa, teme que eles possam ser a “ponta do iceberg”.
Joyce Cook, diretora de Educação e Responsabilidade Social da Fifa, disse a Amanda Davies, da CNN Sport, que provavelmente haverá histórias semelhantes, e incentiva as atletas a contarem seus casos.
“Levamos muito a sério a erradicação do abuso no esporte, no futebol”, declarou a diretora. “Falamos com várias outras federações esportivas internacionais sobre esse assunto no ano passado”, continuou.
“O que está claro é que, para garantir um esporte seguro, também temos que providenciar um remédio para aquelas que foram e estão sendo abusadas, e para garantir que qualquer perpetrador não só não seja bem-vindo, como banido do esporte. Portanto, acho que veremos muitos mais casos surgindo, com certeza. E assim encorajamos as pessoas a se apresentarem e se sentirem seguras para isso”.
A ex-jogadora neozelandesa Rebecca Smith, que trabalhou na Fifa entre 2013 e 2018, diz que ficou “chocada” com a falta de estrutura para denunciar abusos.
“Não havia uma maneira definida de gerenciar as alegações ou informações sobre abuso ou assédio sexual”, contou Smith.
“E depois só havia uns comunicados, tanto internos como externos, para quem apresentou reclamações ou problemas. Havia falta de atendimento e comunicação. Foi muito decepcionante, para ser muito sincera, porque sinto que não há nada mais importante do que a saúde e segurança dos personagens principais do esporte”.
“Acho que é uma situação muito mais prevalente, muito mais comum do que o que está público. E teria de ser uma prioridade para os órgãos de governo e para quem é responsável pela saúde e segurança dos jogadores”, acrescentou.
Quando foi oferecido o direito de resposta aos comentários de Smith, a FIFA apenas disse que seu sistema de relatórios, BKMS, foi lançado em 2013.
No entanto, a Fifa tem outro problema no desafio que enfrenta ao lidar com a questão do abuso do futebol feminino: as multas não pagas.
“Nós chegamos US$ 1 milhão em multas”, disse Cook, que completou: “Quer dizer, essas multas ainda não foram pagar. E não temos como impor isso porque temos que penalizar os indivíduos”.
“Tolerância zero”
Em nota enviada à CNN, a Fifa disse que as recentes denúncias de abusos no futebol mostram que se trata de um “grande problema que afeta a todos nós e que não pode mais ser tolerado”.
“A Fifa mostrou que existe uma política de tolerância zero para casos de abusos sexuais no futebol: qualquer pessoa considerada culpada de má conduta e abuso deve ser levada à justiça, penalizada e removida do esporte”, afirmou.
“Ao mesmo tempo, toda a comunidade global do futebol precisa fazer mais para evitar que tais casos aconteçam e colocar em prática as medidas adequadas para apoiar as vítimas”.
O órgão que rege o futebol mundial destacou o trabalho realizado nos últimos anos, sobretudo o programa Fifa Guardians (Guardiões da Fifa) e o conjunto de recomendações para associações membros em 2019. Também citou o curso Fifa Guardians Safeguarding in Sport Diploma (Diploma dos Guardiões da Fifa de Salvaguardas no Esporte) “para treinar e apoiar as associações membros na implementação das medidas corretas para garantir a proteção de crianças e grupos vulneráveis e profissionalizar o papel de agente de segurança em todo o futebol”.
Por meio de uma série de oficinas e webinários voltados para os jovens, o curso espera treinar agentes e apoiar a proteção de em 211 associações membros da Fifa em todo o mundo.
A declaração da FIFA foi divulgada após a revelação do início de investigação sobre as acusações de abuso sexual do ex-técnico da seleção venezuelana de futebol Kenneth Zseremeta. O anúncio foi feito pelo procurador-geral do país, Tarek William Saab, no início de outubro.
A estrela do futebol Deyna Castellanos e 23 outras jogadoras do país publicaram uma carta acusando seu ex-técnico, Zseremeta, de abuso psicológico e sexual e assédio por orientação sexual.
A CNN não conseguiu entrar em contato com Zseremeta para comentar.
Zseremeta atuou como treinador principal das seleções nacionais femininas Sub-17 e Sub-20 até 2017. Ele está entre os treinadores de futebol da Venezuela mais bem-sucedidos de todos os tempos, com equipes vencendo o Campeonato Sul-americano de Futebol Sub-17 duas vezes, em 2013 e 2016.
A CNN entrou em contato com a Saab e a Federação Venezuelana de Futebol após o anúncio, mas ainda não recebeu uma resposta.
Também em outubro, a Football Australia anunciou a formação de um processo independente de gerenciamento de reclamações para “permitir que jogadoras e ex-jogadoras de futebol apresentem preocupações com relação a supostos abusos, assédio ou intimidação em relação às seleções nacionais do Football Australia e à Liga A”.
O anúncio veio depois que a ex-atacante australiana Lisa De Vanna revelou que foi vítima de agressão sexual, assédio e intimidação durante sua carreira.
A atleta de 36 anos fez suas primeiras denúncias em resposta a uma postagem de Megan Rapinoe no Twitter, no qual a jogadora norte-americana comentou as acusações de má conduta contra o ex-técnico do Carolina do Norte, Paul Riley.
No post de Rapinoe, a australiana De Vanna respondeu que presenciou jogadoras abusando de atletas mais jovens e organizações que protegem as agressoras.
Em uma entrevista ao jornal “Daily Telegraph”, a australiana descreveu algumas das suas experiências pessoais no futebol, além de desejar mudanças no futuro.
“Tem de haver consequências. É preciso ter responsabilização. Tenho visto problemas culturais em todos os níveis ao longo dos anos, de homens e mulheres, e as meninas precisam ser corajosas. As meninas que passaram por isso também precisam ser corajosas e saber que não estão sozinhas”.
Procurada pela CNN para responder aos comentários de De Vanna, a Football Australia disse adota uma “abordagem de tolerância zero” para tal conduta, e que se reuniu com a ex-jogadora.
Também informou que, desde uma revisão em 2019, a Football Australia implantou várias medidas para tentar prevenir tais casos.
“As principais iniciativas até agora incluíram a nomeação de recursos especializados dentro e ao redor de nossas seleções femininas, incluindo novas treinadoras sênior e assistentes, diretores técnicos e de alto desempenho e um gerente de bem-estar nacional”.
“Além disso, introduzimos melhorias na igualdade de remuneração, processos de feedback multicanal e uma estrutura revisada de proteção aos membros e de política de denúncias”, completou o comunicado.
A neozelandesa Smith, ex-jogadora contemporânea de Vanna, disse que essas acusações de abuso vão “contra os valores fundamentais do futebol”.
“O futebol, para alguém como eu, era um lugar onde não apenas era seguro, mas no qual a gente tinha a liberdade de expressar quem era e aprender e ter experiências positivas de crescimento”, disse a ex-jogadora da seleção neozelandesa.
“Aprendi muito com o futebol, por isso fiquei no esporte para retribuir… Estou no futebol porque ele tem o potencial e o poder de mudar muito para sempre”, refletiu.
“O futebol pode mudar culturas, pode mudar estereótipos, pode avançar temas para mulheres em áreas do mundo onde poderia levar outras centenas de anos para isso acontecer. Quando você faz as mulheres jogarem futebol e vê como as pessoas começam a olhar para elas de uma forma diferente, elas se sentem mais confiantes e percebem o quanto podem realizar, apesar do que lhes foi dito por tantos anos. E isso muda as coisas instantaneamente”.
“Mas há o outro lado disso: o lado mais obscuro é chocante, assustador e horrível. E não acho que haja nada pior do que ir para um ambiente onde você sente que deveria ser um dos lugares mais seguros, divertidos e abertos e descobrir exatamente o oposto acontecendo”.
Um número crescente
O futebol feminino dos Estados Unidos ficou chocado com as denúncias surgidas depois que Paul Riley, ex-treinador da Liga Nacional de Futebol Feminino (NWSL), foi demitido do time North Carolina Courage.
Uma reportagem investigativa do site “The Athletic” cita jogadoras contando que, durante anos, Riley usou sua influência e poder para assediar sexualmente as atletas e, em um caso, coagiu uma jogadora a fazer sexo com ele.
Riley negou as acusações da reportagem. A CNN não conseguiu entrar em contato com o ex-técnico para comentar.
A ex-jogadora da NWSL Mana Shim acusou Riley de ser um “predador” que a “assediou sexualmente”, enquanto outra ex-jogadora, Sinead Farrelly, disse que o dano que Riley causou “se infiltra em todas as partes” de seus meios de subsistência.
Quando os jogos da NWSL foram retomados, jogadoras em várias partidas pararam no sexto minuto – para destacar os seis anos que levou para Shim, Farrelly e outras serem ouvidas – e se juntaram no círculo central, dando os braços em uma demonstração de solidariedade.
Farrelly disse à CNN que assistir às jogadoras mostrarem aquela demonstração de união a deixou pasma.
“Espero que o ato das jogadoras unidas e solidárias ajude a mostrar para todos que quem faz a liga são as jogadoras. E elas precisam ser protegidas”.
A atleta continua: “Elas são a parte mais importante disso e ver o poder delas unidas no campo, unidas com a gente e umas das com as outras, de braços dados, foi muito poderoso e espero que as pessoas tenham sentido isso”.
Nos últimos anos, a Fifa baniu do esporte os principais dirigentes do futebol no Haiti e no Afeganistão.
Em novembro do ano passado, o presidente da Federação Haitiana de Futebol (FHF), Yves Jean-Bart, foi banido para sempre do futebol pe
la Fifa após uma investigação de alegações de assédio e abuso sexual.
O comitê de ética da Fifa afirma que Jean-Bart “abusou de sua posição e assediou sexualmente e abusou de várias jogadoras, incluindo menores, em violação ao Código de Ética da FIFA”.
O porta-voz de Jean-Bart, Evan Nierman, disse que seu cliente iria apelar da decisão, dizendo em um comunicado: “A decisão da Fifa é uma farsa de justiça e um movimento puramente político para evitar mais polêmica e má imprensa após uma série de escândalos do alto escalão”.
Também no ano passado, o Tribunal Arbitral do Esporte (CAS) manteve a proibição vitalícia concedida pela Fifa a Keramuudin Karim, ex-presidente da Federação de Futebol do Afeganistão (AFF), após investigar alegações de que diretores do sexo masculino abusaram sexual e fisicamente de jogadores da seleção feminina.
As acusações levaram a marca dinamarquesa de roupas esportivas Hummel a cancelar seu patrocínio à AFF e exigir a renúncia de Karim.
Khalida Popal, uma ex-jogadora afegã, disse à CNN em 2018 que o abuso ocorreu durante uma viagem de sete dias no final de janeiro daquele ano para a Jordânia, na qual se concentraram para treinamento.
Popal, que foi forçada a fugir do Afeganistão e agora vive na Dinamarca, esteva no retiro na Jordânia. Ela conta que pelo menos cinco mulheres foram abusadas em seus quartos por dois diretores do sexo masculino que haviam sido enviados pela AFF para acompanhar os jogadores.
O CAS negou provimento ao recurso de Karim, sustentando sua proibição de Karim e multa de US$ 1,07 milhão.
FONTE: Por CNN