Uma foto do rosto sorridente de Fadi está estampada na camiseta da mãe dele. O jovem, de então 20 anos, foi fotografado perto das margens do Mar Mediterrâneo, na Tunísia.
Acima da imagem de seu filho, Samia Jabloun, de 53 anos, escreveu as palavras “Dove Sei?” – “Onde você está?”, em italiano – com uma caneta marcadora permanente.
Samia diz que viu Fadi pela última vez em fevereiro de 2021. Seu filho viajou para a casa da família na cidade litorânea de Kelibia – o ponto mais próximo da Tunísia com a ilha italiana Pantelleria, que é um ímã para migrantes que tentam chegar à Europa.
“Naqueles poucos dias ele estava agindo de forma estranha”, diz ela.
Ele disse a ela que estava indo pescar com seus primos, mas nunca mais voltou. As últimas imagens que Samia tem de Fadi são de um vídeo de celular gravado no mar por outro passageiro do barco. A costa italiana aparece ao longe, enquanto Fadi sorri e cita um versículo do Alcorão.
Um dos migrantes no barco de contrabando disse mais tarde a Samia que ele e Fadi começaram a nadar para a costa a poucos quilômetros de Pantelleria. O homem disse que conseguiu chegar à costa, mas que não sabia o que havia acontecido com o filho dela. Além dessas informações, Samia tem poucos detalhes.
“Eu tento obter informações sobre ele todos os dias”, diz ela. “Eu não sei por que ele foi. Ele tinha tudo”.
Uma onda migratória
Milhares de pessoas seguem a trilha migratória para a Tunísia todos os anos, atraídas para sua costa de quase 1.127 quilômetros pelo sonho de uma vida melhor do outro lado do Mar Mediterrâneo.
O Mediterrâneo central é a rota de migração mais mortal do planeta, de acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM): mais de 24 mil pessoas desapareceram desde 2014.
Depois de um pico maciço em 2015, o número de pessoas que atravessam o Mediterrâneo estava em uma tendência de queda – mas desde 2021, o número de pessoas que tentam fazer a jornada voltou a subir e essas viagens estão se tornando mais mortais, de acordo com a OIM.
Autoridades da ONU e da Tunísia dizem que agora estão testemunhando o maior aumento na migração ilegal para a Europa desde o início da Primavera Árabe, em 2011.
E enquanto milhões de ucranianos que fogem da guerra em sua terra natal são recebidos de braços abertos em países de toda a Europa, os migrantes vindos de todo o continente africano pagam a contrabandistas inescrupulosos e se amontoam em barcos superlotados para fazer a traiçoeira viagem pelo Mediterrâneo. Muitos morrerão na tentativa.
O recente aumento da migração é uma boa notícia para as gangues criminosas que controlam o tráfico de pessoas ao longo da costa da Tunísia.
‘Barcos sem furos’
Em um bairro pobre de Túnis, perto de uma faixa de praia de onde partem os barcos de migrantes, um chefão do contrabando, que conecta migrantes aos traficantes que têm os barcos, descreve seus cálculos brutais em vidas humanas. Os migrantes pagam até US$ 2 mil (quase R$ 11 mil) cada por um espaço em um barco para a Itália.
“Se organizarmos seis viagens e duas forem pegas, quatro passarão”, diz o contrabandista, que falou à CNN sob condição de anonimato por causa das severas penalidades criminais que ele enfrentaria se for pego e condenado por organizar essas partidas. “Não há garantias no mar. As autoridades podem pegá-lo. A não ser que você morra. Então a morte é o seu destino”.
As embarcações são muitas vezes feitas à mão em armazéns e garagens em Túnis, diz ele.
“Garantimos que temos motores novos e barcos sem furos”, ele se gaba. “Se o tempo estiver bom, é como se estivesse em uma piscina”.
Mas o Mediterrâneo não é uma piscina. Instituições de caridade para migrantes dizem que a viagem pode levar de oito a 10 horas – isso se os barcos conseguirem chegar perto da costa da Itália.
O contrabandista de pessoas diz que planeja enviar sua esposa e filha para a Itália no próximo ano.
“As pessoas saem do nosso país porque é ruim, Túnis é ruim porque não há dinheiro, não há trabalho, não há nada. Quando as pessoas vão para a Europa, pelo menos eles conseguem viver”, diz ele.
Promessas não cumpridas
Nos dias inebriantes da Revolução de Jasmim, que ajudou a lançar a Primavera Árabe, muitos tunisianos esperavam que uma mudança estivesse a caminho. Mas, mais de uma década depois, essa promessa foi quebrada.
“A Tunísia hoje está passando por crises políticas, econômicas e sociais”, diz Ramadan Bin Omar, da ONG Fórum Tunisiano de Direitos Econômicos e Sociais. “A pandemia de Covid também resultou em ainda mais pobreza e marginalização e […] empurrou milhares para os barcos da morte”.
No mês passado, o governo da Tunísia garantiu um empréstimo de emergência de US$ 130 milhões do Banco Mundial para comprar trigo para o pão subsidiado.
Um empréstimo do FMI está sobre a mesa, mas exigirá reformas significativas – como a redução da massa salarial pública e a reforma dos subsídios ao pão – que serão politicamente dolorosas para o presidente Kais Saied.
Na próxima semana, os tunisianos votarão em um referendo sobre um projeto de constituição que pode dar ao presidente Saied poderes mais amplos – como a capacidade de governar por decreto – e pode levar a uma instabilidade prolongada. O referendo não tem requisito mínimo de participação e a maioria dos analistas acredita que tem grandes chances de aprovação.
Matt Herbert, especialista sênior da Iniciativa Global Contra o Crime Organizado Transnacional, diz que a Tunísia está experimentando “uma política cada vez mais frágil, perspectivas econômicas cada vez mais pobres […] tudo isso está piorando na Tunísia”.
“Em parte, por causa disso, provavelmente veremos os níveis mais altos de migração irregular da e através da Tunísia que vimos desde 2011”, diz Herbert.
Em um relatório divulgado esta semana, o grupo descobriu que as interceptações de migrantes no primeiro semestre de 2022 pelas forças de segurança da Tunísia e da Itália estão “bem acima dos níveis registrados durante o mesmo período de 2021”.
Do resgate à recuperação
Em Bizerte, perto do extremo norte do continente africano, o coronel da Guarda Costeira da Tunísia, Ayman Mbarki, diz que mesmo com os barcos mais recentes – financiados com a ajuda da União Europeia e dos Estados Unidos – é impossível deter o fluxo de migrantes.
Ele diz que suas equipes tentam localizar os barcos dos traficantes de pessoas com radar e patrulhas regulares, mas muitas vezes eles chegam ao local para encontrar corpos, não sobreviventes.
“Encontramos muitos corpos de migrantes de todas as nacionalidades: tunisianos e outros africanos. Vemos idosos, vemos jovens, vemos até bebês”, diz ele. “Isso afeta minhas equipes.”
Mbarki diz que mesmo quando suas equipes capturam migrantes, uma vez liberados, muitas vezes essas pessoas tentam fazer a travessia novamente.
“Não importa o quanto você treine ou qual equipamento você tenha, se você não curar as causas profundas da migração ilegal, isso vai continuar”, diz ele.
Uma atração continental
Migrantes inundam a Tunísia vindos de toda a África, muitas vezes trabalhando durante anos para economizar dinheiro suficiente para pagar os contrabandistas de pessoas.
Quando as autoridades da Líbia reprimiram as rotas de migração e os sindicatos de contrabando, a Tunísia se tornou um ponto de passagem mais atraente, dizem as autoridades daqui.
E como as redes de contrabando da Tunísia são mais descentralizadas, são mais difíceis de deter, de acordo com Herbert. Cada vez mais, tanto os migrantes tunisianos quanto outros africanos estão fazendo contrabando.
“Esta rota é o melhor caminho”, diz Deborah, uma migrante marfinense que pediu à CNN que usasse um nome falso por temer por sua segurança. “Aqui na Tunísia é ruim, vivemos ilegalmente. Quando chegarmos à Europa, viveremos ilegalmente também. Mas as condições serão melhores, não temos liberdade aqui.”
Deborah espera fazer a travessia para a Europa com a filha de quatro meses economizando para usar um contrabandista.
Enquanto os homens jovens costumavam ser o grupo demográfico mais comum a fazer a viagem, agora famílias inteiras estão tentando chegar à Europa, na esperança de que seus filhos recebam asilo.
Deborah nos encontra em um matagal perto da praia, onde ela e sua filha estão escondidas com outros quatro migrantes, com medo de alertar as autoridades tunisianas.
Ela trabalha como empregada doméstica e os outros adultos como operários. Seu trabalho os deixa em uma posição precária – um dos migrantes diz que seus chefes tunisianos podem cortar seus contratos sem pagá-los.
Nenhum deles sabe nadar.
“Muitas vezes tenho medo, mas às vezes não tenho medo porque vejo os problemas pelos quais estou passando”, diz Deborah. “Quando vejo nosso futuro em meus sonhos, meus medos desaparecem”.
Ela diz que os imigrantes ucranianos podem entrar na Europa mais livremente porque são europeus.
Bin Omar, da ONG tunisiana, é mais direto: “Os sistemas políticos ainda olham para os seres humanos com base em sua cor, gênero, religião e etnia e não os veem como pessoas que têm os mesmos direitos e no mesmo nível”.
Um protesto modesto
Do lado de fora do complexo da organização das migrações na capital da Tunísia, Túnis, um grupo de cerca de 50 requerentes de asilo de várias nações africanas tenta encontrar um lugar na sombra. Muitos deles estão aqui há meses, esperando a ajuda da OIM.
Várias tentativas da CNN, por telefone e e-mail, de entrar em contato com a OIM na Tunísia falharam, assim como bater na porta do complexo.
Abuboker Juma dorme em um colchão colocado debaixo de uma árvore próxima e tenta ganhar a vida vendendo materiais de garrafas plásticas para reciclagem.
Originalmente de Darfur no Sudão, ele diz que sua família foi atacada durante o genocídio ocorrido lá; vários de seus parentes morreram e o resto da família se dispersou.
Juma fugiu para a Líbia, na esperança de chegar à Europa de lá, mas foi pego na guerra civil da Líbia e acabou em uma série de campos de detenção.
Agora ele está em Túnis, desesperado por um lugar mais seguro para dormir e algo para comer.
“Até onde eu sei, refugiados são todos iguais e devem ser tratados igualmente, mas de alguma forma, eu tenho a sensação de que a ONU é feita apenas para caras europeus, eu acho”, diz Juma.
Procura eterna
Para os que ficaram na Tunísia, a espera e a busca são angustiantes.
Samia Jabloun se uniu a outras mães de filhos desaparecidos para tentar pedir ajuda. Juntos, elas protestaram no Ministério das Relações Exteriores e pediram ajuda ao governo tunisiano. Às vezes, elas são ouvidas, mas ainda não viram nenhum resultado.
No ano passado, Samia viajou para a Itália com algumas das outras mães para tentar encontrar Fadi. Ela pediu ajuda a ONGs tunisianas e italianas, pedindo que o procurassem em prisões e necrotérios. Até agora, não há sinais dele.
“Eu odeio El Harka”, diz ela, usando o termo local para migração ilegal, “não encorajo as pessoas a irem. A mãe sofre quando o filho vai. A mãe sofre muito”.
Apesar de tudo, Samia está convencida de que Fadi ainda está vivo em algum lugar. Fotos dele estão espalhadas pela casa dela, perto do porto que ele deixou naquele pequeno barco.
Ela costuma passar por um mural com uma pintura marcante de seu filho ao lado de um mapa da Tunísia.
Toda noite, ela diz, ele a visita em seus sonhos. “Quando estou dormindo, sempre o vejo. Ele me diz: ‘Minha mãe, não estou morto. Estou vivo, espere por mim, vou chegar, vou chegar’”.
FONTE: Por CNN