Os reality shows impulsionaram o ódio coletivo disseminado pelas redes sociais e trouxeram à tona diversos debates sobre os limites do cancelamento
O cancelamento não é uma novidade dentro da sociedade. Desde os tempos remotos, julgar e condenar alguém, por alguma atitude considerada equivocada, acontecia “normalmente”. Assim, ganhou nomes diferentes no decorrer dos séculos, mas nunca perdeu sua essência de massacrar e apontar o dedo aos erros de outro.
Atualmente, com o advento da internet, isso ficou muito mais fácil e visível diante da possibilidade de manter o anonimato enquanto o internauta profere qualquer tipo de ofensa.
O ano de 2021 ficou marcado como um dos períodos em que mais se cancelou pessoas famosas. A cantora Karol Conká, por exemplo, participou de um reality show na TV em que foi eliminada com 99,17% dos votos, uma rejeição histórica, jamais vista na história do programa que tem mais de 20 anos de exibição.
Fabiana Bruno, empresária da artista para assuntos não-musicais, ficou como responsável pela renovação da imagem dela após uma queda de popularidade tão brusca.
Ela conta que, logo depois de sair do programa, as duas se reuniram para entender as raízes por trás do comportamento de Karol durante o reality e, para tal, buscaram ajuda e apoio profissional. Nesse período a cantora se afastou das redes sociais e se concentrou em seu processo pessoal. Em paralelo, elas montaram uma equipe multidisciplinar para lidar com os desdobramentos públicos e as demandas de comunicação relativas à imagem pública da artista.
“Quando ela entendeu o que aconteceu e a extensão dos seus erros, esse time a ajudou a comunicar ao público, por meio de uma escolha criteriosa de espaços editoriais e oportunidades de fala, sua verdade, bem como a importância de cuidar da saúde mental”, explica.
Procurada pela reportagem da CNN, a rapper não respondeu à entrevista por estar com a agenda cheia, contudo Fabiana comenta que Karol viu no cancelamento uma grande oportunidade de aprendizado e descoberta pessoal e profissional.
O cuidado com sua saúde psíquica foi tão importante, que a artista resolveu dividir as descobertas dessa experiência com o público em uma série de chamada “Vem K Cuidar da Mente”, disponível na internet. “Ao longo de seis semanas, ela conversou com especialistas da área de saúde mental, esclarecendo dúvidas sobre um assunto até então tabu, e que com a pandemia ganhou mais espaço na discussão pública. A série alcançou mais de 10 milhões de usuários, e o conteúdo teve 1,1 milhão de curtidas e mais de 25 mil comentários, atestando a ressonância do tema junto à audiência”, enumera a empresária.
Quando tinha apenas 16 anos, a influencer Vitória Moraes, mais conhecida como Viih Tube, viralizou ao publicar um vídeo em que abre a boca do gato, que estava dormindo, e cospe dentro dele. As imagens correram pela internet e uma chuva de mensagens de ódio caiu sobre a adolescente que ficou deprimida. Na época, ela pediu desculpas ao público e disse que não era uma pessoa ruim. “Eu vou aguentar as críticas porque eu realmente errei, mas eu sei que não mereço isso”, escreveu ela na época.
Você se sente sem chão, muito mal, começa a duvidar de você mesmo, perde o tesão ou a graça de viver, de tentar entender ou de tentar ser compreendido. A gente quer provar para as pessoas quem é de verdade, pede mil desculpas, mas raramente levam a sério ou te ouvem com o coração.Viih Tube, youtuber
“A maioria das vezes, as pessoas só querem tacar pedra e ver você triste. E é o que elas normalmente conseguem”, lamenta ela em conversa com a CNN.
Anos mais tarde, já em 2021, ela também entrou no mesmo reality de Karol e foi execrada pelo público por “ser amiga de todos” e por contar mentiras dentro do programa. Até mesmo a falta de banho foi motivo para que os telespectadores fizessem chacotas da youtuber.
O primeiro cancelamento da vida já a deixou preparada para tudo o que pudesse acontecer quando saísse do confinamento e o segundo baque foi mais ameno.
“Chegou a ser um cancelamento, mas eu estava muito mais resolvida e leve. Senti que vivi tantas coisas lá dentro e entreguei para as pessoas todas as minhas piores versões: controladora, competitiva, manipuladora, doida, tudo! Então, me senti muito mais liberta do que mal. Eu preferia mil vezes ver dessa forma, então não chegou nem perto de eu cair algum tipo de em alguma depressão ou algum problema psicológico que eu poderia reviver quando era mais nova”, detalha.
Fabiano Moraes, pai da influencer, acompanhou de perto todos os movimentos da filha no programa e os comentários sobre ela do lado de fora. Profissional de marketing, mídia e TV, ele já está acostumado com a exposição e não se importou com as mensagens maldosas que a jovem vinha recebendo.
“Lá dentro não é vida real. Aquilo era um jogo, afinal valia R$ 1,5 milhão e praticamente ninguém conhecia ninguém. Você tem que saber administrar cada passo quw você dá, mas, na minha opinião, ela com 20 anos foi uma das melhores jogadoras”, elogia. “Ela é madura demais, soube pegar um limão e fazer uma limonada. Tiramos de letra”, avisa.
Já o humorista Nego Di, que era parceiro de Viih no reality, sentiu um baque mais forte. Sem uma experiência prévia dentro do cancelamento, foi rejeitado com 98,76% dos votos do público, o que o deixou sem entender o que estava acontecendo. Ele acreditava que algo de errado do passado pudesse ter elevado esse número porque não conseguia encontrar qualquer atitude dentro do programa que pudesse ter tamanha reprovação.
“No início foi difícil. Acho que o primeiro dia do lado de fora foi o mais difícil. Eu não dormi, passei a noite acordado sem comer, vendo muitos vídeos e gente me xingando na internet. Foi complicado e emblemático. Meu porto seguro, naquele momento, foi o meu trabalho. Comecei a focar na solução, no que eu podia fazer e parei de pensar no que estava acontecendo, parei de ler mensagens de insultos e o que me fazia mal. Só comecei a pensar em como sair daquilo.”
Alvo certeiro
A antropóloga Izabel Accioly acredita que as pessoas que mais sofrem com a questão do cancelamento são aquelas mais vulnerabilizadas: pessoas pobres, negras, LGBTQIA+ e mulheres. Ela diz que a sociedade entende estes indivíduos e corpos como públicos ou até mesmo como pessoas que “não têm valor”. Por este motivo, está “tudo bem falar mal de quem não tem tanto valor assim”.
Izabel explica que quanto mais opressões aquele indivíduo sofre, quanto maior a sobrecarga de opressão social que sofre, mais autorizadas as pessoas se sentem para fazer esse linchamento virtual e mais efeitos práticos isso vai ter no cotidiano daquelas pessoas.
Ela traça uma análise comparativa entre Karol e o cantor Rodolffo, da dupla com Israel, que, no mesmo reality, também foi cancelado por ofensas racistas, mas não obteve tanto “castigo” após o programa.
“Quando ele saiu, a música dele [“Batom de Cereja”] já estava no primeiro lugar das paradas do Brasil, ele continuou fazendo shows e tendo contratos, a carreira dele continuou, apesar do ato racista exibido em rede nacional, que também é gravíssimo, inclusive enquadrado criminalmente”, salienta.
“O que dá para pensar nesse comparativo é que o tribunal da internet não julga da mesma forma pessoas diferentes. Não é a mesma lei. Existem pessoas cujos os erros são tolerados e pessoas cujos erros não são tolerados. É interessante ficar atento ao modo como o racismo e o machismo vão aparecer nesses discursos, no apontamento desse erro ou no perdão”, avalia.
A psicóloga Niceia Monteiro, especialista em fenomenologia existencial, concorda com essa afirmação e diz que a mulher sempre ocupou um lugar mais vulnerável na história do mundo, portanto se tornou um alvo muito fácil para o ódio na internet.
A mulher se expõe mais, é mais questionada, é mais criticada pelo que faz ou como deixa de fazer. O juiz sempre esteve dentro da gente e agora está mais fácil fazer isso pela internet. Lá atrás, nos textos bíblicos, uma mulher seria apedrejada por ser adúltera, mas Jesus disse ‘atire a primeira pedra quem não tiver pecado’. O cancelamento sempre existiu, mas ganhou um nome específico nos dias de hojeNiceia Monteiro, psicóloga
Izabel, inclusive, enxerga uma certa semelhança entre a “cultura do cancelamento” e a fogueira da Inquisição, entre os séculos 15 e 18, em que mulheres eram acusadas de bruxaria e eram queimadas vivas, em praça pública, por ter opinião própria e livre arbítrio.
“Contudo, tenho percebido nos últimos tempos que o pensamento feminista tem ganhado maior repercussão social e maior aceitação social. A gente tem visto cada vez mais mulheres se engajando com o feminismo ou, pelo menos, compartilhando com o feminismo a ideia radical de que mulheres são gente. Eu sinto que sim, ainda existem muitas críticas, mas, guardadas as proporções, a gente já vê muita coisa diferente acontecendo.”
A cantora Luisa Sonza assumiu o namoro com o cantor Vitão em setembro de 2020, logo depois de terminar o casamento com o humorista Whindersson Nunes. Depois, passou 2021 suportando diversos tipos de ataques na web até terminar o namoro em agosto deste ano. Na internet, ela confessou que estava com o psicológico abalado diante da fúria dos internautas.
A psicóloga Niceia salienta que, em casos como esse, a união em torno do ódio é algo que pode ter um efeito extremamente devastador no psicológico das vítimas. “Quem sofre pode ser gatilho para problemas sérios da saúde mental como transtorno de pânico, ansiedade e depressão. Somos mais rápidos em assumir culpa moral do que reconhecer atos de bondade. Por incrível que pareça, somos vistos erroneamente como bons quando apontamos erro do outro.”
Algoritmo do cancelamento
A internet é feita de algoritmos e quanto mais o nome de uma pessoa é enunciado, mais engajamento e fama ela consegue, seja para o bem ou para o mal. Isso significa que o cancelado obtém uma certa vantagem quando seu nome roda pela web.
Depois de passar duas vezes pela rejeição do público, Viih Tube viu aí duas grandes vantagens: publicou o terceiro livro, chamado “Cancelada”, pela editora Play Livros, falando sobre os dois momentos tensos de sua vida, além de conseguir trabalhos com as críticas que recebeu.
“Eu soube usufruir isso para realmente render, ganhar profissionalmente, fechar trabalhos que tinham a ver com banho, com família…”, diz ela. “Quando eu saí, escrever esse livro foi o fechamento desse ciclo, no qual eu me libertei e me livrei de tudo”, conclui.
Nego Di também aproveitou o momento frutífero e criou um show chamado “98%”, em que trata com bom humor justamente sobre a cultura do cancelamento e faz piadas com o que viveu. Ele acredita que a comédia se baseia exatamente em rir da própria desgraça, portanto desde o começo da carreira fazia piada com situações de sua vida, como a infância e até racismo, então dessa vez não seria diferente.
“Fazer as pessoas rirem comigo sempre foi uma grande saída. No momento em que a gente está vivendo a situação é dolorido, mas depois se torna engraçado. Sempre quando eu passo por algum problema, penso que daqui a pouco vai passar e a gente vai rir de tudo isso. E é sempre assim. Eu já fiz piada sobre ter sofrido racismo, sobre quando fui assaltado, despejado, passei fome, sobre não ter um pai presente, então isso é mais uma temática que aconteceu na minha vida e é história para contar. É assim que eu penso”, avalia.
Izabel resgata outro exemplo, ocorrido em 2020, em que a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, que fez uma crítica a um álbum da cantora norte-americana Beyoncé, com um viés considerado racista, e que recebeu duras críticas nas redes sociais, principalmente da comunidade negra. Porém, o nome da especialista circulou ainda mais pela internet e ela ficou mais conhecida do que antes.
“Dias depois, Lilia estava dando uma aula magna na Federal da Bahia. Pode até ter acontecido esse cancelamento, essa crítica, mas será que cancelou o que efetivamente? Cancelou a participação dessa intelectual nos espaços em debate público? Os livros dela deixaram de ser vendidos? Não, do mesmo jeito que as músicas do Rodolffo não deixaram de ser primeiro lugar nas paradas de sucesso”, aponta.
A gente tem que ver que os discursos de cancelamento acontecem para muita gente, mas os efeitos desse cancelamento, dessas críticas e deboches, eles não resvalam do mesmo modo para cada indivíduoNiceia Monteiro, psicóloga
“O engajamento traz mais visibilidade, dá mais like, aí você contabiliza um dinheiro diante do que foi discutido e debatido”, completa Niceia.
O fenômeno da humilhação pública, movido a pulsões dos comportamentos de grupo, sempre aconteceu e se perpetuará ainda mais pela tecnologia. A própria vida de Karol, tão julgada no início do ano, termina 2021 com muitas pessoas e formadores de opinião na mídia questionando e relativizando o cancelamento por ela sofrido, à luz de outros aspectos e acontecimentos que vieram à tona conforme o tempo foi passando, e em comparação a “cancelamentos” sofridos por outras personalidades, com motivações aparentemente tão ou mais graves.
“Mais do que criar um ranking de cancelamentos, uma competição para ver quem merece ser mais amplamente e mais rapidamente julgado, acho que o debate se torna mais produtivo se buscarmos entender as pulsões e nuances por trás tanto do comportamento de quem é considerado ‘cancelável’, quanto os impulsos por trás dos ‘canceladores’. Até porque, sem sofisticar o raciocínio, o cancelador de hoje pode facilmente se tornar o cancelado de amanhã”, pontua Fabiana Bruno.
FONTE: Por CNN