“Uma borboleta” é como Luana*, 37 anos, diz se sentir após 10 anos de relacionamento com o ex-parceiro. Há cinco meses solteira, ela conta que as agressões psicológicas deixaram traumas. “Ele não me deixava arrumar emprego ou estudar nem gerar um bebê”.
Casos de violência psicológica passaram a ser tipificados e registrados no Amazonas somente a partir de julho deste ano quando a Lei de nº 14.188/2021 foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Antes, eram incluídos em crimes de ameaça, perturbação da tranquilidade e constrangimento ilegal.
“Nós não deixávamos a violência psicológica sem a penalização devida”, diz a delegada Débora Mafra da Delegacia de Crimes Contra a Mulher. “Depois que [a Lei] passou a existir, abarcamos todos esses crimes dentro dela”, explica.
No primeiro mês em vigor, a Secretaria de Segurança Pública do Estado registrou 17 denúncias desse tipo em Manaus. Em agosto, houve um crescimento de 1.252%, com 213 ocorrências. Em setembro, houve novo aumento para 258 notificações, variação de 121,13% em relação a agosto.
Mexer com as emoções, com o psicológico, é o primeiro passo para que a agressão seja consumada contra a mulher. A psicóloga Vanuza Siqueira, da ONG Casa Mamãe Margarida, explica que “quem está em uma relação abusiva não consegue visualizar o que a gente, que está de fora, vê”.
É o caso de Maria*, de 39 anos. “Eu preferia ficar na rua do que voltar para minha casa porque eu sabia que lá estaria me esperando uma pessoa doente, com a mente fértil e tóxica”, diz. O relacionamento que viveu por oito anos só teve fim porque ela se ateve aos “detalhes” e percebeu que “ele queria entrar na minha mente”.
“O ciúme dele era tão abusivo que quando eu ia na taberna, ele ficava da janela me olhando. Começou assim, com minhas idas à taberna, depois ele não queria que eu fosse buscar minha filha sozinha. Eu tinha que esperar ele chegar do trabalho às seis da tarde para buscar minha filha na escola – ela saía às quatro horas da tarde. Eu não cedia porque eu percebia que aquilo era abusivo”, conta Maria.
O ex-marido a isolava da família. “Meus irmãos e minha mãe não podiam entrar na minha casa se ele não permitisse”. Mesmo contestando [“eu dizia para ele que ele não morava sozinho e que eu pagava metade da casa e, portanto, ela era nossa”] ele não a deixava visitar a mãe e nem o contrário.
Maria é religiosa, frequenta a igreja protestante, e diz que as roupas que usa cobrem as pernas até abaixo do joelho. Ainda assim, ele interferia no traje. “Ele só deixava eu usar as roupas que ele queria que eu usasse”. Atualmente, ela briga na Justiça contra o ex-marido pela pensão da filha.
A violência psicológica desencadeia outros tipos de agressão. A SSP registrou 17.489 denúncias de 30 diferentes tipos de crimes contra a mulher no estado. Os registros constam de janeiro a setembro de 2021. Ameaça, injúria, vias de fato e lesão corporal são os de maior incidência.
Conforme o Atlas da Violência de 2021, a taxa de homicídios de mulheres de 2009 a 2019 aumentou no Amazonas. O aumento, considerado expressivo, foi de 51,4%.
Na primeiro ano de pandemia, em 2020, foi registrada alta de 34% dos casos de violência doméstica no Amazonas, segundo o Relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A cada seis horas e meia, uma mulher foi vítima de feminicídio. Os assassinos tendem a ser companheiros, ex-companheiros ou outros parentes da vítima.
Conforme o Atlas da Violência de 2021, a taxa de homicídios de mulheres de 2009 a 2019 aumentou no Amazonas. O aumento, considerado expressivo, foi de 51,4%.
Na primeiro ano de pandemia, em 2020, foi registrada alta de 34% dos casos de violência doméstica no Amazonas, segundo o Relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A cada seis horas e meia, uma mulher foi vítima de feminicídio. Os assassinos tendem a ser companheiros, ex-companheiros ou outros parentes da vítima.
Retirar a mulher de um relacionamento abusivo requer trabalho. “Empoderamento”, afirma Vanuza Siqueira . Segundo ela, é importante trabalhar as capacidades dessa mulher porque “ela perde a noção de si, perde o amor próprio. Ela não vê que tem capacidade de trabalhar ou buscar algo para melhorar a vida. Parece que tudo está focado no relacionamento”.
Redes de apoio, que abarquem desde o acolhimento no momento da denúncia até a proteção a vítima, são essenciais para uma futura emancipação da mulher e seu empoderamento. “É importante que exista grupos que trabalhem nessas mulheres o empoderamento e que busquem terapias alternativas”, afirma Vanuza.
Rede de apoio
O acolhimento à vítima de violência doméstica – ou “rede apoio” – existe em três níveis: delegacia para denúncia e acolhimento, assistência social para prevenção e hospitais para cuidados médicos.
Em outra esfera, para a criança e o adolescente, há o conselho tutelar, o juizado da infância, os hospitais e o acolhimento. Vanuza avalia que os órgãos atuantes nessa área no estado não funcionam bem, como deveriam. “Quantas vezes nós já precisamos de conselho tutelar por uma situação que não cabia a nós obter resolução e, ainda assim, mesmo recorrendo ao órgão, tivemos de intervir. A instituição acaba fazendo um trabalho de conselho, de polícia, de tudo. A gente comunica, mas nada é feito, então a gente mesmo faz”, diz Vanuza.
A Casa Mamãe Margarida atua em dois sistemas: de acolhimento institucional, com meninas que sofreram violação de direitos e por determinação do juizado, com medida de proteção, elas vão para o instituto – nessa condição, são 20 meninas; e há a obra social, o “contraturno”, integrado à escola municipal que contempla 270 meninas matriculadas.
“Quem encaminha para gente é o conselho tutelar, a delegacia de crimes contra a criança e o adolescente e o juizado da infância. Quando chegam aqui, elas vêm com medida de proteção. Tem também a obra social com meninas em vulnerabilidade social, que passam o dia aqui, na escola e nos projetos”, explica a psicóloga.
As gestoras da Casa realizam anamnese com as meninas interessadas em se matricular e estudam a estrutura da família para saber se é o público da instituição.
As colaboradoras da Casa questionam as meninas: “qual é o seu sonho?” e trabalham em cima da resposta, criando um plano de estudos, traçando metas, inserindo as assistidas em teatro e dança e, posteriormente, na idade adequada, as enviando ao mercado de trabalho por meio do projeto Menor Aprendiz. “Elas se tornam protagonistas da própria história”, diz a psicóloga.
Muitas das meninas que já passaram pela Casa são bem sucedidas, desde advogadas, médicas a assistentes sociais. “Muitas meninas não retornam para casa porque não veem solução, justiça contra o padrasto [que é abusador]. A própria mãe, muitas vezes, é conivente ou é tão vítima quanto a adolescente ou a criança porque há dependência emocional e financeira”, disse.
Quando meninas são alvos
“A Experiência do Bolo” foi a peça teatral que mais marcou Rafa*, de 11 anos. No espetáculo, ela protagonizou a Josefina. “Eu aprendi que mesmo suas amigas demorando, você tem que tratar elas bem. Temos de ser pacientes com as pessoas”, disse.
A história é sobre “uma mulher que convida as amigas para fazer um bolo. As amigas dela demoram muito para chegar e ela vai ficando estressada. No final, o bolo não dá certo”, conta.
Na Casa Mamãe Margarida, Rafa faz teatro, música, dança e as “atividades que eles propõem aqui pra gente”. Sem titubear, ela diz que, dentre essas, sua preferida é atuar. “Eu quero que as meninas acreditem que não é só porque elas não conseguem decorar texto que elas não podem tentar. Elas têm que tentar”.
Às vésperas do grande espetáculo para familiares, Rafa foi chamada pela professora para integrar o elenco da peça, composto pela turma de adolescentes. “Eu fiquei no lugar de uma menina. Aconteceu ‘uns negócios’ na casa dela, aí ela pediu para eu ficar no lugar dela”, disse sem dar muitos detalhes dos bastidores.
A mãe da adolescente foi assassinada, revelou a psicóloga Vanuza Siqueira.
“A Rafa foi pega de última hora porque nós sabíamos que ela ia decorar o texto rápido. Ela super deu conta. Todo mundo ficou surpreso com o desenvolvimento dela na apresentação, parecia que ela tinha feito várias vezes e, na verdade, foram só dois dias de ensaio”, disse Vanuza.
Rafa esbanja simpatia. Corre pelo salão, dança carimbó e interage com as colegas. Enquanto observa o ensaio da dança paraense entre as meninas, Vanuza conta que nem sempre Rafa foi assim.
“Ela teve muita dificuldade de ficar na Casa no primeiro ano. Ela queria estar perto da mãe porque a mãe tinha alguns problemas com o padrasto, então ela achava que a mãe ia morrer. Ela criou um mundo completamente traumatizado, e foi através do teatro que ela conseguiu [superar]”, disse a psicóloga.
Rafa mora no São José, bairro da zona leste da cidade, nas proximidades da escola. Ela sonha em ser atriz ou advogada porque quer “defender as pessoas”.
“Quem vê a Rafa assim, hoje, nem imagina que ela chegou aqui super inibida, tímida. Ela é um prodígio”, diz Vanuza.
“Voltei para retribuir”
Vanuza sofreu violência sexual, maus tratos e violência doméstica. Aos 9 anos de idade ela recorreu, sozinha, à Casa Mamãe Margarida. “Eu sofria violência doméstica com a minha mãe e sexual com meu padrasto”, diz.
Depois de adulta e formada, ela retornou ao instituto para prestar serviços e ajudar outras meninas. Vanuza é inspiração e cuidado para as outras.
FONTE: Por AMAZONAS ATUAL