Professores descrevem obstáculos para dar atenção a dois grupos diferentes ao mesmo tempo, mas veem oportunidade no futuro para aluno ter papel mais ativo, criativo e autônomo.
Depois de um ano de escolas fechadas, redes públicas e privadas vêm adotando um modelo de reabertura gradual. Chamado de “híbrido”, é um revezamento de alunos no ensino presencial, para diminuir o número de pessoas nas salas de aula e garantir o distanciamento social na pandemia.
Em um mesmo dia, parte da turma assiste à aula em casa, enquanto o restante vai ao colégio.
Professores e estudantes relatam, no entanto, que juntar as modalidades on-line e presencial compromete a aprendizagem e sobrecarrega ainda mais os docentes. Segundo especialistas ouvidos pelo G1, nem sequer é correto definir o sistema como “híbrido”, já que não há mudanças nas propostas pedagógicas (entenda mais abaixo).
O modelo implementado de atender dois grupos ao mesmo tempo exige equipamentos tecnológicos nas escolas e nas casas dos alunos. “Não é a nossa realidade, muito menos em escolas públicas”, afirma Ana Ligia Scachetti, gerente pedagógica da Nova Escola, organização de educação.
“Poderíamos pensar em outras opções: metade dos alunos fazendo atividades, enquanto os outros estão com o professor, por exemplo. Depois, trocam. Ou até mesmo um rodízio de professores – um sempre com a turma presencial, outro com a que está à distância. Mas, claro, isso exigiria dividir as classes e repensar os tempos de aula.”
Sara Aragão, de 16 anos, segue o esquema de rodízio e vai uma vez por semana a um colégio particular de São Caetano, na Grande São Paulo. Nos demais dias, acompanha a aula pela internet, em casa.
“O professor dá mais atenção para quem está no presencial, porque não tem jeito, não tem microfone móvel nem sistema de câmera que capte a lousa. Os colegas que vão à escola tiram foto do quadro e mandam para a turma”, diz.
“Primeiro, ele [o docente] explica para quem está lá na sala; depois, fala tudo de novo, mais baixinho e perto do computador, para quem está on-line. Ou seja, a gente fica só com metade do tempo de aula.”
A mesma dificuldade é relatada pelos próprios professores. Na região serrana do Rio de Janeiro, Nícolas Tadashi dá aulas de português em três escolas.
“Estamos patinando. São dois lugares onde os alunos estão – nas telas do computador, com câmera desligada, perguntando só pelo chat; e ali na nossa frente, na sala. Ter dois focos de atenção demanda muito da gente”, conta.
O que seria, afinal, o ensino híbrido?
Educadores afirmam que não é correto chamar de “híbrido” este sistema de rodízio.
“A ideia de ter um professor com parte da turma na sala e outra parte em casa faz com que a gente perca todas as qualidades do ensino on-line e todas do presencial”, explicou Lucia Dellagnelo, diretora-presidente do Centro de Inovação para Educação Brasileira (Cieb), durante evento virtual da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), em fevereiro.
“O verdadeiro ensino híbrido requer planejamento próprio; não é só misturar o presencial e o on-line. Se não mexer na proposta pedagógica, no espaço de aprendizagem e na autonomia do aluno, será só a mesma modalidade de sempre.”
Gregório Grisa, doutor em educação e professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), concorda que é preciso usar o ambiente virtual e o presencial de forma que sejam complementares. “No momento, a gente não vive nada disso. São tentativas emergenciais de rodízio, já que estamos no maior pico da pandemia até hoje.”
O que precisaria ser feito, na prática, para que tivéssemos o ensino híbrido na escola? O mais importante é que o professor crie espaços em que o aluno pense em soluções e colabore com os colegas.
É o que explica Adolfo Tanzi, doutor em linguística aplicada e um dos autores do livro “Ensino híbrido: personalização e tecnologia na educação”. “Não é mais uma aula expositiva, com um professor lá na frente da sala, passando os conhecimentos. O aluno precisa ter um papel mais ativo, para que seja criativo e tenha mais autonomia”, diz.
Veja, em tópicos, as características do ensino híbrido mencionadas por Tanzi:
- O “design pedagógico” não é mais aquela configuração à qual estamos acostumados, com carteiras enfileiradas. A aula fica mais descentralizada, com diversos espaços de aprendizagem, onde o aluno deve ter autonomia – laboratórios, cantos diferentes da sala, cantina, parquinho, casa dos alunos…
- Há momentos em que o professor conduzirá a atividade, e outros em que o aluno terá de solucionar os problemas sozinho ou em grupos.
- Uma das propostas é criar “estações de trabalho”. A turma pode ser dividida em pequenas equipes, cada uma com uma atividade diferente. Por exemplo: todas as crianças leem o mesmo texto em casa. Depois, na aula, um grupo vai preparar uma cartolina com palavras-chave; outro vai assistir a um vídeo no tablet; um terceiro irá montar um jogo baseado na leitura.
- Outra possibilidade é a chamada “sala de aula invertida” – em casa ou na biblioteca, o aluno lê sobre o assunto da aula e vê vídeos antes que ela ocorra. Depois, quando estiver com o professor, vai discutir, tirar dúvidas e fazer outras atividades. Não parte “do zero”.
- O uso da tecnologia fica integrado à aula presencial. Vai além de passar para um slide o que está escrito na lousa. Podem ser usados games, ferramentas digitais de pesquisa, gravação de vídeos ou chats on-line, por exemplo.
Dellagnelo faz uma observação: o ensino híbrido não é um formato restrito à pandemia. Pode ser aplicado mesmo quando as aulas forem 100% presenciais.
Vantagens:
- A aula “descentralizada” possibilita que os alunos aprendam de formas diferentes e troquem conhecimentos entre si.
- As crianças e jovens passam a ter mais autonomia, em vez de apenas “receberem” passivamente os ensinamentos.
- O professor pode acompanhar o desempenho de cada aluno de forma mais próxima. Naquele modelo de carteiras enfileiradas, só na hora da prova que o docente saberá se aquele aluno do “fundão” entendeu a matéria.
- Durante a pandemia, podem ser formados diferentes grupos nos ambientes virtuais, cada um com uma tarefa. O professor conseguirá transitar por todos e acompanhar o andamento das atividades.
- Se parte da sala estiver em casa, e parte na escola, é possível criar dinâmicas que integrem os dois grupos. Quem está na escola fica responsável por elaborar cartazes, enquanto os alunos on-line produzem uma “nuvem de palavras” com os termos principais da matéria. Depois de 20 minutos, todos apresentam seus trabalhos.
- Se os estudantes não tiverem sinal de internet para assistir a vídeos, podem receber fotos do que foi feito na sala, para continuarem a atividade em casa. Cada um fica responsável por uma etapa.
- O sistema híbrido pode ser um caminho para o ensino integral, sem a necessidade de ter as crianças na escola durante dois turnos, caso não seja possível ainda (por custos ou falta de estrutura). Nos espaços de inovação e nas casas dos alunos, passa a ser viável dar continuidade ao que foi trabalhado em sala de aula.
Desafios
Veja os obstáculos na implementação do ensino híbrido, segundo os especialistas:
- Para que o professor possa integrar tecnologias na forma de ensinar, precisa ter preparo para isso. Em geral, ele está apenas familiarizado com as ferramentas digitais, sem o domínio aprofundado delas.
- Não é correto deixar que “cada um se vire”. É preciso investir em conectividade nas salas de aula e na construção de espaços de inovação.
- Segundo dados do levantamento “TIC Domicílios 2019”, formulado pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), aproximadamente 30% dos lares no Brasil não têm acesso à internet. E há uma diferença significativa entre as classes sociais: em famílias cuja renda é de até um salário mínimo, metade não consegue navegar na rede em casa. Na classe A, apenas 1% não tem conexão.
- O Censo Escolar 2020 mostra que, na educação infantil, a internet banda larga está presente em 85% das escolas particulares. Já na rede municipal, o percentual é de 52,7%.
- Por último, existe uma barreira cultural: o modelo de ter o professor na frente, expondo a matéria, e os alunos enfileirados, escutando, está fortemente implementado no Brasil. É preciso repensar as práticas pedagógicas.
FONTE: Luiza Tenente, G1 O Portal de Notícias da Globo