O navio encalhado no Canal de Suez que fechou a rota nesta semana criou um obstáculo para mais de 12% do comércio mundial — porcentagem que se estima que passe pelo canal e com valor estimado de US$ 9,5 bilhões
Os esforços para tentar desencalhar o Ever Given continuam neste domingo (28). O navio tem 400 metros de comprimento e mais de 200 mil toneladas e encalhou na transversal no canal, no Egito, com a popa enterrada em uma das margens.
Mas, apesar do severo impacto econômico que o incidente está causando, este não é o pior obstáculo a interromper o comércio pelo canal, que liga o Mar Vermelho ao Mediterrâneo.
Em junho de 1967, 15 navios que passavam pelo canal foram pegos no fogo cruzado da Guerra dos Seis Dias, entre Israel e o bloco formado por Egito, Síria e Jordânia.
A guerra terminou em questão de dias, mas o canal ficou fechado por anos — um dos navios afundou e os outros 14 encalharam e só foram retirados 8 anos depois.
Entenda por que o bloqueio durou tanto tempo.
Como o conflito começou?
A Guerra dos Seis Dias foi um dos conflitos resultantes das tensões entre países árabes e Israel nas décadas após a fundação do Estado na região.
A relação entre Egito e Israel era tensa desde que Israel havia invadido a península do Sinai, no Egito, em 1956. O país foi forçado a se retirar, e um acordo de desmilitarização da região foi criado com a condição de que o estreito de Tiran ficasse aberto.
Em 1967, no entanto, as tensões entre os dois países atingiram um pico e o Egito, sob a liderança de Gamal Abdel Nassar, anunciou que o estreito ficaria fechado para os israelenses.
Após semanas de tensões, em 5 de junho de 1967, estourou a Guerra dos Seis Dias quando Israel lançou um ataque aéreo surpresa no qual destruiu 90% das aeronaves militares do Egito e nocauteou a Força Aérea Síria.
A guerra de Israel contra Síria, Egito e Jordânia foi rápida e destrutiva, com os países árabes perdendo o conflito.
O bombardeio surpresa atingiu também 15 navios cargueiros civis que transitavam pelo Canal de Suez. Os navios comerciais eram de diferentes países: Bulgária, Tchecoslováquia, França, Polônia, Suécia, Alemanha Ocidental, Reino Unido e Estados Unidos.
“Assim que cruzamos a extremidade sul do canal, o capitão me informou que a guerra havia estourado entre Israel e os países árabes. À medida que avançávamos, os aviões decolaram da areia, lembro-me nitidamente, e atacaram a base aérea egípcia, voando baixo. E seu ataque foi muito preciso “, disse Peter Flack, um marinheiro do navio britânico Agapenor, à BBC Radio 4 em 2010.
O Agapenor transportava borracha da Malásia e brinquedos de plástico para o Reino Unido e foi uma das embarcações presas no canal.
John Hughes, do Melampus, que carregava óleo de palma e nozes da China, disse à BBC Radio 4 que “dois aviões israelenses sobrevoaram o navio, vindos do deserto do Sinai, e o barulho foi ensurdecedor”.
Em meio aos ataques, Israel afundou um dos navios, que pertencia aos Estados Unidos.
Enquanto isso, o restante dos barcos teve que ancorar no Grande Lago Amargo, um dos lagos do Canal de Suez.
“Eles não queriam ser alvos, então ficaram lá”, diz Sal Mercogliano, especialista em história marítima da Universidade de Campbell, nos Estados Unidos, à BBC Mundo.
No segundo dia do conflito, o Egito afundou navios nas extremidades do canal e plantou explosivos para bloquear a rota e impedir que Israel a cruzasse.
A guerra terminou no dia 10 de junho, com a derrota dos países árabes. Mas o Egito manteve o bloqueio e os 14 navios que estavam presos no canal não puderam sair.
Negociações diplomáticas e abandono dos navios
Depois do conflito, em cerca de duas semanas, negociações diplomáticas permitiram que alguns dos marinheiros que estavam nos navios partissem, explicou Peter Snow, apresentador da BBC Radio 4, no programa The Yellow Fleet (A Frota Amarela, em português), de 2010. Mas o restante das tripulações ficaram presos no local por três meses.
“Os países aos quais os navios pertenciam não conseguiram chegar a nenhum acordo com o Egito ou Israel que lhes permitisse navegar”, afirma Mercogliano. “Acreditava-se que em algum momento o bloqueio acabaria, mas não acabou.”
Como o fechamento se estendeu indefinidamente, as companhias de navegação mantiveram tripulações nos navios para cuidar das instalações e das mercadorias, alternando os marinheiros de tempos em tempos.
As tripulações se reuniram e formaram a Associação do Grande Lago Amargo (GBLA), que serviu para organizar atividades que lhes permitissem “manter a sanidade”, conta Mercogliano.
A GBLA organizou uma “olimpíada” paralela às do México em 1968, com 14 esportes — como regatas, mergulho, tiro, corrida, pólo aquático, arco e flecha —, em que tripulações de diferentes nacionalidades competiram entre si e se encontraram.
Os membros da GBLA também jogavam tênis de mesa e montaram um campo de futebol, segundo depoimentos coletados pela BBC Radio 4.
Além disso, a GBLA abriu uma estação de correios para receber correspondência, com selos próprios (que mais tarde passaram para as mãos de colecionadores de todo o mundo).
Mas ao longo dos anos, “sem o fim do bloqueio à vista, várias empresas declararam os navios perdidos e comunicaram os prejuízos às suas seguradoras”, diz Mercogliano.
Os navios acabaram cobertos com poeira e areia dos desertos adjacentes ao canal, e ficaram conhecidos como “A Frota Amarela”, devido à cor que adquiriram após o abandono.
Quais foram as consequências do bloqueio?
Desde que foi aberto à navegação em 1869, o Canal de Suez “tem sido uma artéria importante porque economiza milhares de milhas de viagem para navios que evitam ter que contornar a África”, diz o especialista em história marítima Lincoln Paine.
Embora o volume de mercadorias tenha aumentado muito hoje em dia em comparação com a década de 1960, o bloqueio causado pela guerra em 1967 também foi bastante grave, com consequências globais de duradouras.
“O mais afetado foi o Egito, porque 4% do PIB (Produto Interno Bruto) do país vinha das taxas cobradas pelo uso do canal”, afirma Paine.
O fluxo mundial de petróleo também mudou, porque ficou mais difícil para os países árabes exportarem o recurso. Então a Rússia passou a enviar mais petróleo para a Europa, segundo Paine.
“Os Estados Unidos e a Europa eram quem movimentava o comércio mundial. A China ainda não era uma potência. Os navios que a Europa mandava, que eram menores, tinham que dar a volta na África, então o custo do transporte subia”, explica Paine. “Como a distância pela África era muito longa, decidiu-se que, em vez de enviar dois barcos pequenos, era melhor enviar um único maior. Assim, o tamanho dos barcos começou a aumentar”.
“Quando o Canal de Suez foi reaberto em 1975, havia navios que não podiam mais passar, então uma das coisas que os egípcios têm feito desde então é expandir o canal”, diz Mercogliano.
Como a rota foi reaberta?
Paine acredita que, com o fechamento, o Egito “estava enviando uma mensagem ao Ocidente, de que era visto como pró-Israel”.
“Eles achavam que interromper o fluxo de petróleo e o comércio internacional forçaria europeus e americanos a reavaliar suas posições em relação ao Oriente Médio”, disse Paine.
Embora a medida não tenha funcionado, o bloqueio foi estendido porque ninguém queria ceder, explica o especialista.
Até que outro confronto acabou levando à reabertura do canal: a Guerra do Yom Kippur, em 1973, quando forças árabes lideradas por Egito e Síria tentaram recuperar territórios que haviam sido ocupados por Israel na Guerra dos Seis Dias.
“A Guerra do Yom Kippur trouxe todos para a mesa de negociações novamente. A resolução do conflito incluiu a decisão de reabrir o canal. Todos viram que o fechamento só tinha tido consequências negativas. Então o Egito (liderado por Anwar al Sadat, que sucedeu Nasser após sua morte em 1970) decidiu mudar de rumo “, diz Paine.
Após a retirada dos explosivos e dos navios que Nasser havia afundado, processo que durou cerca de um ano, o canal foi reaberto para navegação em 5 de junho de 1975, no aniversário da Guerra dos Seis Dias.
Apenas dois dos 14 barcos que tinham ficado presos conseguiram sair por conta própria, o Münsterland e o Nordwind, da Alemanha. O resto teve de ser rebocado ou desmontado no local.
Bloqueios como esse demonstram “a importância vital do canal e a vulnerabilidade da cadeia de abastecimento marítimo”, diz Mercogliano. “Um navio ou um conflito podem sozinhos atrapalhar o comércio do mundo todo.”
FONTE: BBC NEWS